quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Pequena retrospectiva e demasiadas expectativas

Um novo ano começa e vislumbramos muito trabalho pela frente!

O ano passado foi certamente um marco em nossas vidas e a melhor palavra para defini-lo é “mudança”. Foi em 2015 que nosso casamento “tomou forma” e nossos laços familiares também. Foi quando eu fiz o curso “De volta ao Lar” da Camila Abadie e comecei a traçar esse árduo caminho de redescobrimento da vocação a qual fui chamada por Deus. Também foi o ano que abrimos os olhos para as mazelas da atual realidade educacional brasileira e, como resposta às nossas angústias, descobrimos o Homeschooling e suas inúmeras vantagens. Também foi o ano em que criamos o blog “Na via do Saber”, com o intuito de chamar a atenção das pessoas, principalmente de nossos amigos e familiares, para os absurdos que vem acontecendo no mundo da educação e ajudá-las a descobrir e entender um pouco sobre a Educação Domiciliar. Tentamos mostrar que há alternativas para os pais que simplesmente não desejam ver seus filhos à mercê de um ensino ineficiente, que limita a capacidade das crianças e que, como se não bastasse, ainda é tomado por ideologias de esquerda. Tentamos apresentar um caminho possível para pais que desejam, nas palavras do Papa Francisco, voltar do seu exílio — porque se auto-exilaram da educação dos próprios filhos — e recuperar a sua função educativa.

O blog começou em agosto do ano passado e iniciamos procurando demonstrar a baixa qualidade do ensino e como o sistema escolar no Brasil está totalmente dominado por ideologias mentirosas e demoníacas. Mas como nossa intenção não era sermos um clipping de notícias sobre a péssima educação escolar no Brasil, partimos para o lado bom da “coisa” e apresentamos o Homeschooling como uma possível solução para nossos problemas.

Inicialmente explicamos o que é o Homeschooling, depois procuramos discutir os pontos mais controversos que norteiam a temática, como a socialização das crianças, nossa capacidade para ensiná-las e a legalidade de sua prática no Brasil. Nesse período, paralelamente ao blog, estávamos muito concentrados em estudar tudo quanto possível sobre a educação domiciliar. Fizemos os cursos “Homeschooling 1.0” da Camila Abadie e “Educação Literária da Criança” do professor Rafael Falcón; passamos a acessar diversos blogs brasileiros e americanos de famílias que já praticam essa modalidade de ensino; entramos em fóruns sobre Educação Domiciliar no Brasil; lemos diversos livros, como “Catholic Education: Homeward Bound” da Kimberly Hahn e Mary Hasen,  “Designing Your Own Classical Curriculum – A Guide to Catholic Home Education” da Laura Berquist, “Teaching the Trivium” da Harvey & Laurie Bluedorn e também “Well-trained Mind – A Guide to Classical Education at Home” de Susan Wise Bauer e Jessie Wise. Além dos estudos, ainda fizemos muitas amizades com famílias homeschoolers, as quais estamos sempre em contato, trocando experiências e recebendo apoio e incentivo.

Leituras que julgamos essenciais àqueles que desejam começar a praticar o Homeschool


Em 2015, apesar do nosso filho ainda estar frequentando a escola, passamos a acompanhar sua educação mais de perto e complementávamos seus estudos em casa. Ainda que estivéssemos certos que o melhor para ele seria o Homeschooling ainda não nos sentíamos preparados para assumir tamanha responsabilidade. Além do receio quanto à nossa preparação, ainda não tínhamos falado com o pai biológico do Victor Hugo e não poderíamos iniciar tamanha mudança na vida dele sem o seu consentimento.

Pois bem, nas férias de dezembro fomos à cidade do pai do Victor e, após uma longa, produtiva e esclarecedora conversa, conseguimos um aceno positivo para começarmos a praticar a educação domiciliar. Existem diversas formas de praticar essa modalidade de educação e, a princípio, nossa intenção era oferecer uma educação clássica, no entanto, o pai dele, movido por uma preocupação natural para quem não conhece o ensino clássico, impôs algumas regras, as quais estamos dispostos a cumprir, como não deixar de dar todo o conteúdo que seria ministrado na escola. Portanto, tentaremos compatibilizar a educação clássica com as matérias escolares. Além da questão das disciplinas, temos ainda que resolver um problema: o Victor Hugo já está na idade correspondente à fase lógica do Trivium, mas ele não passou adequadamente pelo estágio gramatical. Então teremos que suprir suas deficiências relacionadas ao estágio gramatical antes de entrarmos propriamente na fase lógica. Ainda não sabemos exatamente como o Victor responderá ao currículo que estamos montando e estamos cientes que talvez tenhamos que fazer muitas mudanças em nosso planejamento. Mas estamos muito confiantes e animados.



Por fim, desde que chegamos de nossas férias, estamos trabalhando muito no currículo do Victor Hugo (por isso a ausência de posts aqui no blog). Também estamos montando uma grade horária e mudando toda nossa rotina. Realmente a educação domiciliar requer muita dedicação e toda a família tem que estar disposta a mudar seus hábitos para que ela seja possível. Temos que ser comprometidos e ter disciplina, mas sabemos que valerá muito a pena. 

Em breve voltaremos com um post no qual pretendemos compartilhar o currículo que montamos para nosso filho de 13 anos referente ao oitavo ano do ensino fundamental II. Desejamos a todos que esse ano seja um ano de muito aprendizado e que possamos entrar na maravilhosa via do saber, sempre comprometidos com a busca da Verdade que é Jesus Cristo.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Praticar Homeschooling no Brasil é legal?

Uma das maiores dúvidas acerca da prática do Homeschooling no Brasil gira em torno de sua legalidade, uma vez que inexiste qualquer norma expressa a respeito. Muitos pais afirmam seu desejo de praticar o ensino domiciliar, mas não o fazem por medo de infringir a lei. Outros escolhem ser homeschoolers, mas agem escondidos, como se fossem contraventores. Ainda há aqueles com espírito mais libertário que parecem preferir que seja ilegal mesmo para poder praticar a desobediência civil. Enfim, poucas pessoas têm segurança da situação jurídica da educação domiciliar no Brasil, e para dirimir essas dúvidas, fizemos esse post tomando por base o excelente parecer escrito pelo jurista Alexandre Magno Fernandes Moreira, Diretor Jurídico da Associação Nacional de Ensino Domiciliar, sobre o tema[1]. Encorajamos todos aqueles que têm qualquer interesse por Homeschooling a aprender e, se possível, memorizar as argumentações do Dr. Alexandre Magno.


Conhecer a legislação é obrigação de quem pretende um dia praticar o ensino domiciliar


O ensino domiciliar, como substituto do ensino escolar, não é proibido expressamente por nenhuma norma no ordenamento jurídico brasileiro, seja constitucional, legal ou regulamentar. Nem, tampouco, é expressamente permitido ou regulado por qualquer norma. O fundamento dessa omissão é bastante simples: o assunto somente está sendo debatido no Brasil recentemente e, ainda, de forma tímida. Existe, pois, uma lacuna na legislação brasileira, os dois principais documentos que tratam de educação (Constituição Federal – CF e Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB) sequer mencionam a educação domiciliar, sendo que, apenas essa omissão já é suficiente para, de forma preliminar, declarar a validade da educação domiciliar, pois a CF tem como um dos pilares o princípio da legalidade (art. 5°, II), que considera lícita qualquer conduta não expressamente proibida em lei.

Porém, como a mera inexistência de proibição ainda pode gerar dúvidas naqueles que consideram o tema por demais estranho, a adequação do fato em discussão deve ser verificada ao espírito das normas vigentes. Em outros termos, além de não existir norma expressamente proibitiva, procurar-se-à determinar a existência ou não de normas que apoiem a aplicação do ensino domiciliar.

A questão da licitude ou ilicitude da educação domiciliar será analisada gradativamente ao se procurar responder a duas questões essenciais, seguindo a hierarquia do ordenamento jurídico brasileiro: Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos (no caso, a Declaração Universal dos Direito Humanos) e leis ordinárias (no caso, a LDB, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – e o Código Civil – CC). As questões são as seguintes:


1ª. A quem compete prover a educação?

Não há controvérsia a esse respeito, sendo a obrigação compartilhada entre a família e o Estado, conforme demonstra o artigo 205. CF:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

E o artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação:

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Ficando claro, portanto, que o Estado e a família são responsáveis pela educação.


2ª. A quem compete a primazia na educação dos filhos menores?

A resposta é dada de forma cristalina, respectivamente, na Declaração Universal dos Direito Humanos e no Código Civil, conforme se segue:

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos (artigo XXVI).

Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação.

Portanto, os pais têm os deveres de educar e de dirigir a educação dos filhos e, para cumpri-los, podem utilizar-se dos métodos que acharem mais pertinentes: matricular os filhos em uma escola, ensiná-los em casa ou utilizar qualquer outra forma intermediária. Nesse sentido, o Estado somente pode tomar para si a educação do menor caso a família não tenha vontade ou condições de educá-lo em casa. Por cautela, porém, deve se considerar a conclusão alcançada até aqui como, ainda, provisória. Para torná-la definitiva, é necessária a apreciação de todos os dispositivos constitucionais, legais e regulamentares pertinentes à matéria.


Aspectos constitucionais

Inicialmente, deve ser analisado o art. 208 da CF:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (...) § 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.

O inciso I do mencionado artigo não obriga à escolarização, mas à educação, que é conceito bem mais amplo. Sua interpretação é bastante simples: a educação, que começa com o nascimento do indivíduo, deve assumir uma feição formal quando ele tem de 4 a 17 anos, ou seja, deve cumprir as finalidades enumeradas no art. 203 da CF:

a) pleno desenvolvimento da pessoa;
b) seu preparo para o exercício da cidadania; e
c) sua qualificação para o trabalho.

Para alcançar essas finalidades, os pais podem, se tiverem as condições necessárias, educar os filhos em casa. Mais ainda: de qualquer forma, a educação deve ser realizada em casa. A própria CF reconhece isso ao dispor, no art. 229, que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”. Portanto, a educação domiciliar não apenas é permitida, mas também exigida dos pais.

Em síntese: constitucionalmente, a educação domiciliar é um dever da família, que perde boa parte do sentido de sua existência se não provê-la para seus membros mais frágeis. Também é um direito individual dos pais, que somente deixarão de exercê-lo se não puderem ou não quiserem.

A Constituição Federal de 1988 garante aos pais o direito de educar seus filhos


Aspectos infraconstitucionais

O art. 6° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação determina aos “pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental”. Esse dever, porém, não se aplica aos pais que optaram pelo ensino domiciliar por um motivo muito simples: o objeto da lei não é a educação em geral, mas apenas aquela ministrada nas escolas: “esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias” (art. 1°, § 1°).

Defender interpretação diversa seria como pretender aplicar o Código de Trânsito Brasileiro, que trata apenas dos veículos terrestres, a aviões e navios. Mesmo que, apenas por hipótese, a LDB seja considerada como uma lei aplicável a qualquer modalidade de ensino, deve-se atentar para o fato de que ela mesma não exige que o aluno da educação básica (formada pela educação infantil e pelo ensino fundamental e médio) tenha escolarização anterior:

Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns: (...) II - a classificação em qualquer série ou etapa, exceto a primeira do ensino fundamental, pode ser feita: (...) c) independentemente de escolarização anterior, mediante avaliação feita pela escola, que defina o grau de desenvolvimento e experiência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme regulamentação do respectivo sistema de ensino;

O dispositivo referido permite expressamente que um aluno ingresse em algum dos níveis da educação básica sem necessidade de ter frequentado anteriormente a escola: basta a realização de uma avaliação que meça seu grau de desenvolvimento. Trata-se de simples regra de bom-senso, que determina prioridade do efetivo aprendizado sobre o mero comparecimento em sala de aula.

O mesmo bom-senso foi utilizado pelo Governo Federal ao estabelecer que a aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) tem como consequência a expedição de um certificado de conclusão do ensino médio. Essa norma está contida na PORTARIA NORMATIVA N° 4, DE 11 DE FEVEREIRO DE 2010, expedida pelo Ministro da Educação:

Art. 1º O interessado em obter certificação no nível de conclusão do ensino médio ou declaração de proficiência com base no Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM deverá acessar o sítio eletrônico (http://sistemasenem2.inep.gov.br/Enem2009/), com seu número de inscrição e senha, e preencher o formulário eletrônico de solicitação de certificação, de acordo com as instruções pertinentes, até o dia 31 (trinta e um) de março de 2010.

Art. 2º O interessado deverá observar os seguintes requisitos: I - ter 18 (dezoito) anos completos até a data de realização da primeira prova do ENEM; II - ter atingido o mínimo de 400 pontos em cada uma das áreas de conhecimento do ENEM; III - ter atingido o mínimo de 500 pontos na redação. Parágrafo único. Para a área de linguagens, códigos e suas tecnologias, o interessado deverá obter o mínimo de 400 pontos na prova objetiva e, adicionalmente, o mínimo de 500 pontos na prova de redação.

Art. 3º O INEP disponibilizará às Secretarias de Educação dos Estados, Municípios e do Distrito Federal e aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia as notas e os dados cadastrais dos interessados, nos termos do art. 1º, por meio do sítio (http://sistemasenem.inep.gov.br/EnemSolicitacao/).

Art. 4º Compete às Secretarias de Educação e aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, definir os procedimentos para certificação no nível de conclusão do ensino médio com base nas notas do ENEM 2009.

Nessa portaria, há um dispositivo de suma relevância: o art. 2°, que enumera os requisitos para a obtenção do certificado de conclusão do nível médio: o postulante precisa apenas ter 18 anos e alcançar uma pontuação mínima. A relevância do dispositivo está exatamente naquilo que omite, pois não requer, para a obtenção do certificado, a comprovação de que foram concluídas regularmente todas as séries do ensino fundamental e médio. Assim, aquele que foi educado em casa poderá fazer o ENEM e, caso preencha os requisitos, conseguir um certificado de conclusão do ensino médio. Implicitamente, o Ministério da Educação reconheceu como válida a educação domiciliar, adotando uma noção material de ensino médio (determinado nível de desenvolvimento intelectual) ao invés da tradicional concepção formal (número de séries frequentadas pelo aluno na escola).


E quanto ao Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA?

O art. 55 do ECA contém uma norma, à primeira vista, bastante peremptória: “os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. Em uma interpretação isolada, parece não haver opções para os pais: mesmo a contragosto, estariam obrigados a matricular os filhos nas escolas. Porém, obviamente, não existe norma isolada no sistema jurídico. Toda interpretação deve ser sistemática, ou seja, deve considerar o conjunto das normas jurídicas. E, como visto, há normas constitucionais, legais e regulamentares que permitem o ensino domiciliar. Neste caso, há uma peculiaridade, pois o ECA tem um artigo que determina um modo especial de interpretação de suas normas:

Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Trata-se da doutrina da proteção integral, que requer prioridade absoluta à criança e ao adolescente, considerando a efetivação de seus direitos como o norte para a interpretação do ECA. A questão, assim, torna-se bastante simples: qualquer norma dessa lei deixa de ser obrigatória se for demonstrado que, no caso concreto, sua aplicação não reflete o melhor interesse do menor. Além disso, a lei contém o vício já examinado em outros casos: a educação domiciliar nem chegou a ser discutida durante a sua tramitação. Mais ainda: à época de sua promulgação, nem se sabia, no Brasil, da existência dessa modalidade de educação. Nesse sentido, a opção era muito clara: deveria ser imposta a matrícula em estabelecimento escolar porque a alternativa conhecida à época era, simplesmente, a ausência de instrução. Pois bem, o art. 55 do ECA deve ser interpretado restritivamente, ou seja, somente estão obrigados a matricular os filhos na escola, os pais que não quiserem ou não puderem prover adequadamente o ensino domiciliar.

O Estatuto da Criança e do Adolescente também não proíbe a pratica do Homeschooling


Ainda é preciso fazer uma referência ao Conselho Tutelar, previsto nos art. 131 a 135 da lei. Seu objetivo é, expressamente, “zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente”. Entre esses direitos, está, obviamente, o de receber a educação adequada. Assim, os membros do Conselho Tutelar exercem o poder de polícia sobre as famílias no que tange à educação dos filhos. É possível que verifiquem se os menores estão recebendo a instrução adequada para sua idade. Podem, inclusive, realizar testes para avaliar o desenvolvimento intelectual dos menores. Os limites da atuação do Conselho Tutelar esbarram no poder familiar concedido pelo Código Civil aos pais. Como visto, somente a estes cabe dirigir a educação dos filhos. Caso um membro desse conselho resolva atuar pelo simples fato de os pais estarem educarem os filhos em casa, ele estará usurpando o poder familiar e praticando, portanto, um ato de abuso de autoridade, que implica responsabilidade civil, administrativa e, eventualmente, penal.


E o Código Penal?

A última lei a ser analisada é o Código Penal, que dispõe acerca do chamado “Abandono intelectual”;

Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.

Perceba-se que não há, aqui, nenhuma obrigação de manter o filho em uma instituição escolar, mas apenas de “prover à instrução primária”, ou seja, de educá-lo, em casa ou na escola. Isso se torna mais evidente ao verificar o tratamento que a Constituição de 1937, vigente à época da promulgação do Código Penal Brasileiro, dava à educação:

Art. 125 - A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular.

É difícil imaginar um dispositivo que permita a educação domiciliar de forma mais evidente. Está bem estabelecido o direito primordial dos pais e o caráter apenas colaborativo da atuação do Estado. Portanto, não matricular os filhos na escola será crime de abandono intelectual apenas se os pais não proverem a instrução em casa. Ademais, é possível, ao contrário, que a matrícula em instituição de ensino que não consiga prover adequadamente a instrução, como é bastante comum, configure esse crime.

A educação domiciliar não se caracteriza como abandono intelectual


Conclusões

A precedente análise do ordenamento jurídico brasileiro permite as seguintes conclusões:

1ª) o ensino domiciliar não é proibido no Brasil. Não há nenhuma norma jurídica que, expressamente, o considere inválido. Em casos como esse, aplica-se o princípio constitucional da legalidade, que considera lícito qualquer ato que não seja proibido por lei;
2ª) o ensino domiciliar é um dever que os pais ou responsáveis têm com relação aos filhos. A educação, em sentido amplo, deve ser dada principalmente em casa, sendo a instrução escolar apenas subsidiária;
3ª) o ensino domiciliar também é um direito dos pais, pois, conforme o Código Civil, uma das atribuições decorrentes do poder familiar é a de dirigir a educação dos filhos. A escolarização somente é necessária se os pais não puderem ou não quiserem educar os filhos em casa;
4ª) essa interpretação foi adotada implicitamente pelo Ministério da Educação ao dispor que a obtenção de determinada pontuação no Enem dá direito a um certificado de conclusão do ensino médio, sendo desnecessária qualquer comprovação escolar;
5ª) a matrícula em instituição de ensino somente é obrigatória, nos termos da LDB e do ECA, para os menores que não estejam sendo ensinados em casa ou cuja educação domiciliar revele-se, indubitavelmente, deficiente;
6ª) somente há crime de abandono intelectual se não for provida instrução primária aos filhos. O CP, ao prever essa conduta, não colocou como requisito que essa instrução deva ser dada na escola;
7ª) o Conselho Tutelar tem o poder, assegurado legalmente, de fiscalizar a educação recebida por crianças e adolescentes, podendo, inclusive, submeter aqueles educados em casa a avaliações de desempenho intelectual condizente com sua idade. Não pode, porém, determinar o modo como serão educados, em casa ou na escola, o que constituiria abuso de autoridade por intromissão indevida na esfera do poder familiar dos pais.






[1] Situação Jurídica da Educação Domiciliar em Nosso País. (http://www.aned.org.br/portal/downloads/A_situacao_juridica_do_ensino_domiciliar_no_Brasil.pdf)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Nós somos capazes de ensinar nossos filhos?

Praticar o ensino domiciliar certamente exige muito trabalho por parte dos pais. Devemos estudar, preparar-nos, criar uma rotina organizada e uma vida disciplinada. Nós estamos passando por esse período de preparação em nossa casa. No próximo ano, começaremos o homeschooling em “tempo integral” e estamos nos preparando para tal. Realmente não é fácil, mas é maravilhoso constatar que, ao colocarmo-nos como protagonistas da educação de nossos filhos, não somente fazemos um grande bem a eles, mas nós mesmos crescemos na vida intelectual, na fé e nas virtudes.

Apesar de toda a dedicação exigida dos pais, não é necessário que eles sejam intelectuais ou diplomados em educação para ensinar os filhos em casa. Já ouvimos várias pessoas dizendo que gostariam de praticar o homeschooling, mas que não têm coragem de fazê-lo porque não possuem grandes conhecimentos em educação. Essa é uma preocupação esperada de pais que prezam pela boa instrução dos filhos. No entanto, antes de tomar qualquer decisão baseada nesse entrave, temos que estudar a realidade dos fatos com seriedade e honestidade. Sobre a capacitação dos pais, há vários aspectos que fazem com que um pai ou uma mãe sejam bons professores para seus filhos. Tentaremos tratar em seguida dos pontos mais importantes que temos enfrentado.


a) Qual estudo os pais precisam possuir para educar seus filhos?

Depois de estudar a história de diversas famílias homeschoolers, percebemos que a dedicação e a disciplina dos pais são muito mais importantes para o melhor aprendizado dos filhos do que sua formação acadêmica. Fato que comprova isso são os resultados dos jovens educados pelos pais nos testes dos EUA: a média das notas dos jovens educados por pais que não cursaram qualquer universidade é muito superior à média dos alunos que estudaram em escolas públicas e privadas. Por que isso acontece? Os motivos são diversos e já tratamos deles nos artigos anteriores. De nada adianta um professor ter PhD em pedagogia pela Universidade de Harvard, se ele tiver que ensinar dezenas de alunos simultaneamente e fazê-lo por obrigação profissional. Os pais não ensinam seus filhos com o intuito de ganhar dinheiro ou cumprir horários, mas porque os amam. O amor aos filhos faz com que os pais conheçam melhor seus pupilos e se esforcem muito mais para ensinar do que a maioria dos professores de escolas. Além disso, o ensino personalizado permite detectar a melhor forma de ensinar cada filho. Identificamos o modo em que cada um aprende melhor e também suas dificuldades.

Vale aqui uma advertência: não podemos nos iludir e achar que educar os filhos em casa no Brasil é tão fácil como nos EUA, onde há centenas de livros, cursos e currículos online para homeschoolers à disposição dos pais. A riqueza de material que os norte-americanos possuem é tão grande, que eles podem escolher os meios para educar os filhos não só por método educacional, mas por religião e até mesmo por filosofia política e econômica. Existe material específico para Católicos, Protestantes, Conservadores, Libertários etc. Os americanos também têm à disposição muitos bons livros que servem de ponto de partida. Citamos aqui alguns dos livros que têm nos ajudado muito. Eles ensinam passo a passo como colocar em prática a educação domiciliar, inclusive nos mostram como elaborar currículo e planejar o ano acadêmico. Enquanto o primeiro é um livro que busca apresentar o Homeschooling como uma excelente opção de educação para uma família católica, os outros três são guias bem detalhados que ensinam como educar os filhos segundo o método clássico.

1. Catholic Education: Homeward Bound – A Useful Guide to Catholic Home Schooling (Kimberly Hahn e Mary Hasson);

2. Designing Your Own Classical Curriculum – Guide to Catholic Home Education (Laura Berquist);

3. Teaching the Trivium: Christian Homeschooling in a Classical Style (Harvey e Laura Bludorn);

4. The Well-Trained Mind: A Guide to Classical Education at Home (Susan Wise Bauer e Jessie Wise)
Infelizmente, esses livros foram escritos para a realidade norte-americana. Portanto, é recorrente a citação de materiais que não possuímos no Brasil ou mesmo de atividade promovidas por associações locais de Homeschoolers, as quais ainda não existem em nossas terras. Nossa obrigação perante tal deficiência é adaptar-nos na medida do possível e começar a criar esses materiais, o que já vem acontecendo, ainda que de forma embrionária. Talvez esse atraso em relação a alguns países seja até mesmo uma vantagem para os brasileiros, pois isso nos impede de cair no cômodo erro de apoiar-nos sobre um manual ou curso detalhado que nos diga tudo o que devemos fazer, como se existisse uma fórmula mágica. A precariedade nos obriga a encontrarmos nós mesmos, ainda que por tentativa e erro, um caminho que se adapte a cada um de nossos filhos. Aliás, esse trabalho é a essência do homeschooling. Quanto mais seguimos cronogramas e currículos prontos, mais trazemos a escola para dentro da educação domiciliar, mais transformamos nossa casa em um colégio, o que está muito longe de ser nosso objetivo. Por isso, nenhum dos cursos que citaremos abaixo é exaustivo e nos deixa prontos a educarmos em casa, mas são uma grande ajuda para nos introduzir no mundo da educação.

Por sermos a primeira geração de homeschoolers brasileiros, é nossa a responsabilidade de criar os primeiros cursos e escrever os primeiros livros para auxiliar as gerações futuras. A boa notícia é que isso já está acontecendo e algumas famílias já começam a produzir cursos que ajudam muito os pais. Destacamos o excelente Homeschooling1.0[1], do Gustavo e Camila Abadie. Esse curso é obrigatório para quem está em dúvida ou pretende praticar o homeschooling.  É evidente que as aulas do curso não são e nem pretendem ser suficientes como preparação à educação domiciliar. Ele oferece o caminho das pedras e nos dá condições de iniciar uma preparação séria. Vale muito a pena pesquisar blogs de famílias brasileiras que já praticam o homeschooling. Alguns deles descrevem detalhadamente as atividades, currículo, organização de agenda etc. O Valorizando o Conhecimento[2] é um bom exemplo de blog familiar que nos ajudou muito.  Citaremos no decorrer do texto alguns outros cursos importantes à disposição dos brasileiros, mas finalizamos este tópico com um pequeno vídeo do Marcos Alcântara sobre livros para homeschooling"Recomendações de livros para Homeschooling" 
Curso essencial para aprendermos o que é Homeschooling e como praticá-lo.

b) Não vamos ensinar cálculo diferencial e física quântica a nossos filhos!

Não há motivos para ter medo de não conseguir aprender o que devemos ensinar. Lembremos que na celebração de nosso matrimônio nós nos comprometemos a educar nossos filhos. Deus não nos pediria uma coisa se Ele mesmo não pudesse nos capacitar para tal. Muito antes das crianças irem para a escola, todos os pais já são professores, pois ensinam diversos conhecimentos aos filhos. Até os 4 anos de idade da criança, uma mãe, por mais incipiente formação intelectual que possua, já ensina seus filhos a falar, comer, andar, desenhar e tantas outras coisas. Como pode essa mãe ficar com medo de não conseguir fazer o que professores de jardim da infância e primário fazem? Essas mesmas mães receosas já pararam para analisar quais são as atividades nas quais os filhos se envolvem na escola? Não há nada ali que qualquer pessoa alfabetizada e dedicada não possa ensinar aos filhos. Mesmo a alfabetização, que requer boa preparação do professor, pode ser realizada de forma mais eficiente em casa do que na escola. É lógico que os pais deverão estudar sobre alfabetização. Por exemplo, é necessário aprender o máximo que conseguirem sobre os métodos de alfabetização, tais como o fônico, o silábico e o global. Deverão escolher um método e aprofundar-se nele. Mas nada disso é impossível para uma pessoa de inteligência média. No Brasil mesmo, temos à nossa disposição alguns bons livros que servem de guia para a alfabetização. Para quem prefere seguir um curso, o professor Carlos Nadalim, que oferece um programa de alfabetização em casa utilizando o método fônico. Em seu site, Como Educar Seus Filhos[3], o professor Nadalim disponibiliza não só o curso, mas um livro gratuito e vários vídeos com dicas preciosas. Também podemos ver vários testemunhos animadores de pais que alfabetizaram seus filhos seguindo suas instruções. 

Também não podemos deixar de citar aqui a importância de apresentar a literatura aos filhos desde a mais tenra idade. Mesmo que os pais não sejam até então leitores assíduos, eles têm a obrigação de introduzir seus filhos no mundo da literatura. O curso “Formação Literária da Criança”, do professor Rafael Falcón[4] ajuda muito os pais na preparação para essa grande responsabilidade. Notem que a literatura é fundamental para a formação de qualquer um. Escreveremos sobre esse tema com mais detalhes futuramente, mas podemos adiantar que uma pessoa com uma boa formação literária expande seu imaginário[5] e amplia sua capacidade de percepção da realidade. Isso significa que a boa formação literária ajudará nossos filhos não só em seu desempenho acadêmico, mas em todos os âmbitos de sua vida, até mesmo na formação de virtudes ou em sua capacidade empreendedora.

O primeiro nível da educação clássica é a educação literária

c)   E quando os filhos crescerem, não aprenderão coisas mais complexas?

Conforme a criança se desenvolve, o conteúdo de seus estudos fica mais complexo. Mas, antes de entrar em pânico, devemos nos recordar que nós mesmos aprendemos aquelas matérias quando éramos garotos. Por qual motivo um adulto não aprenderia? Hoje, eu e a Juliana vivemos exatamente essa etapa com nosso filho. Ele está começando a estudar conteúdos mais difíceis nas diversas áreas. Como durante o ano de 2015 apenas fizemos um homeschooling de complemento, fomos obrigados a seguir o conteúdo que a escola passava. Muitas vezes, nós víamos em seus livros informações que não lembrávamos. Por exemplo, na semana passada estudamos as angiospermas. Eu nem sequer me lembrava o que eram as angiospermas. Então dei uma lida no livro e depois comecei a estudar com ele. Basta ler e aprender. Não estamos falando de física quântica, mas de algo que todos podemos aprender com um pouco de esforço. Conforme nós vamos ensinando, também aprendemos e criamos não só nas crianças, mas em nós mesmos, uma base bem reforçada sobre a qual poderemos facilmente adquirir cada vez mais conhecimento.

Não, você não precisa entender essa imagem para ser homeschooler


Ainda assim, pode-se argumentar que no ensino médio os alunos devem aprender algumas matérias que uma mãe sem uma boa formação teria dificuldades para aprender e ensinar. Sobre esse problema, temos alguns pontos a considerar. Primeiro: se uma mãe começou a ensinar os filhos desde criança, automaticamente ela sempre estará preparada a aprender aquilo que deve ensinar aos filhos, conforme explicado acima. Segundo: os pais podem revezar no papel de professor. Muitas vezes a mãe não tem conhecimento em uma área, mas o pai pode ter. Aqui em casa mesmo, eu tenho mais facilidade com matemática do que a Juliana, então geralmente eu estudo matemática com ele. Mas, e se o pai trabalha o dia todo fora de casa? Basta adaptar os horários. No próximo mês, nós montaremos o currículo e agenda do Victor para o ano de 2016. Como eu trabalho o dia todo e tenho compromissos na Igreja algumas noites, terei que marcar uns dias de estudo com ele em algumas noites da semana ou nos sábados. Não é nada impossível de ser feito. Terceiro: se, mesmo assim, os pais não conseguirem ensinar todo o conteúdo aos filhos, há a possibilidade de contratar professores particulares, matricular em cursos especializados, como o Kumon, ou mesmo frequentar alguns cursos on-line. Já há vários excelentes professores brasileiros oferecendo cursos on-line. Por exemplo, o site "História Expressa"[6] possui diversos cursos de história que adolescentes podem seguir. Também há diversos professores de línguas que oferecem excelentes cursos on-line. Cito aqui o curso de Inglês do professor Mairo Vergara[7] e o curso de Latim do professor Rafael Falcón[8]. Quarto: a experiência das famílias que praticam homeschooling mostram que, quando os filhos chegam na adolescência, os pais tornam-se mais diretores de estudos do que professores, pois os garotos aprendem a estudar sozinhos. Temos que lembrar sempre que um dos objetivos da educação domiciliar é criar o amor ao estudo em nossos filhos. Portanto, com 14 ou 15 anos, eles já devem por conta própria aprofundar-se nos mais diversos temas. Vimos casos em que adolescentes estudavam por conta própria matérias que são estudadas somente em universidades. Isso não significa que nossos filhos serão gênios. Nós não podemos colocar esse peso em nossas costas e muito menos nas costas das crianças. Não é porque eu vejo um vídeo de um menino de 5 anos declamando sonetos de Camões que eu devo esperar que meu filho faça o mesmo. Tampouco devo achar que o garoto estudará engenharia ou medicina por conta própria aos 15 anos de idade. Isso pode acontecer, mas não é para isso que fazemos homeschooling. Nós tiramos nossos filhos da escola porque sabemos que podemos oferecer-lhes uma educação e fazer deles pessoas melhores, não para serem gênios superdotados.

O homeschooling não existe para transformar nossos filhos em gênios.


A conclusão que podemos chegar é que para praticar a educação domiciliar os pais devem, por amor aos seus filhos, estar dispostos a dedicar-se, disciplinar-se, estudar muito, perder seu tempo livre etc. Caso não queiram ou não possam mudar seu estilo de vida, é melhor que mantenham os filhos na escola. Não podemos tomar essa decisão porque achamos que é o melhor a ser feito sem ter consciência da grande mudança que fará em nossas vidas. O segundo semestre de 2015 foi um preparatório para o homeschooling em nossa casa, o que já foi um trabalho enorme. Mas toda essa fadiga nos faz felizes, pois é um cansaço que provêm do amor a Deus e a nosso filho. 




[1] http://www.isidorodesevilha.com.br/courses/homeschooling-1-0/
[2] http://www.gehspace.com/
[3] http://comoeducarseusfilhos.com.br/blog/author/carlos-nadalim/
[4] http://rafaelfalcon.com.br/
[5] Para mais informações sobre a formação do imaginário, recomendo essa entrevista do professor Rafael Falcón com o professor Francisco Escorsim: https://www.youtube.com/watch?v=p_nOlR64KXQ
[6] http://historiaexpressa.com.br/
[7] http://www.mairovergara.com/
[8] http://www.cursodelatimonline.com.br/

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

E a socialização?



A família é a primeira e fundamental escola de socialização: enquanto comunidade de amor, ela encontra no dom de si a lei que a guia e a faz crescer. O dom de si, que inspira o amor mútuo dos cônjuges, deve pôr-se como modelo e norma daquele que deve ser atuado nas relações entre irmãos e irmãs e entre as diversas gerações que convivem na família. E a comunhão e a participação quotidianamente vividas na casa, nos momentos de alegria e de dificuldade, representam a mais concreta e eficaz pedagogia para a inserção ativa, responsável e fecunda dos filhos no mais amplo horizonte da sociedade.

São João Paulo II, Familiaris Consortio, 37.

Todas as vezes que falamos sobre Homeschooling com nossos familiares e colegas, surge a seguinte indagação: “Concordo que educar os filhos em casa pode ser mais eficiente e mais compatível com os valores morais cristãos, mas e a socialização? As crianças precisam de amigos! Elas não ficarão isoladas em casa, sem contato com pessoas?”

Para responder a essa pergunta, devemos antes precisar o que significa sociabilidade e socialização para não correr o risco de falar sobre uma coisa e querer dizer outra.




1. Definição

a.       Sociabilidade

Diferente da socialização, a sociabilidade é uma habilidade ou um conjunto de habilidades de uma pessoa em se relacionar com outros.  Por exemplo, se uma pessoa é extrovertida e simpática, ela tende a ser mais sociável do que uma pessoa introvertida e mal humorada. Portanto, a sociabilidade é uma ferramenta para a socialização.

b.      Socialização

Segundo o Dicionário Caldas Aulete, a socialização é o “ajustamento de uma pessoa, especialmente uma criança, ao grupo social em que se deve inserir (processo de socialização)”. Portanto, socializar é adequar-se à vida em grupo, o que não é em si algo bom ou ruim, a depender do grupo no qual a pessoa se socializa. Quando uma criança vai à escola e adequa-se às regras de convivência de seus colegas, podemos afirmar que ela está socializada naquele meio. Caso a criança fique isolada dos colegas, dizemos que ela não se socializa, muitas vezes por falta de sociabilidade, como acontece com crianças muito tímidas. Apesar de ser um tanto óbvia, essa definição nos faz formular outra questão de resposta não tão simples: em que meio eu quero que meu filho seja socializado? Como educá-lo de modo a fornecer a ele habilidades sociais para que possa se adequar a um meio social saudável, que o leve a ser uma pessoa melhor?


2. Socialização e sociabilidade no lar e na escola

No fim das contas, o objetivo de todo pai cristão é educar seu filho para amar. Se uma pessoa ama as pessoas com quem ela convive, ela certamente não sofre de nenhum problema de socialização. Portanto, devemos ensinar nossos filhos a servir o próximo, a sacrificar-se por outra pessoa, a esforçar-se para fazer o bem, a respeitar as pessoas diferentes etc. Esse deve ser o núcleo da preocupação dos pais em relação à socialização de seus filhos. Abaixo dessa dimensão caritativa, podemos citar também outros elementos, desta vez relacionados aos sentimentos da criança, como a diversão em grupo, as brincadeiras, esportes etc. Queremos que nossos filhos sejam santos e que se divirtam, que brinquem, que sejam crianças. Refletiremos agora sobre como o ambiente familiar e escolar podem influenciar a socialização das crianças.


a.       Aprendendo a amar

Não há forma melhor de socialização do que amando e não há lugar melhor para aprender a amar do que em casa. Lembremos que o lar deve ser uma Igreja doméstica. Devemos amar a Deus sobre todas as coisas, estar sempre em oração e frequentar os sacramentos. Se cultivamos o amor divino, ele será refletido no matrimônio e chegará aos filhos. As crianças aprendem a amar ao serem amadas pelos pais e ao vivenciar o amor entre eles. Se os pais se doam, se perdoam, se sacrificam um pelo outro, as crianças aprenderão a agir da mesma forma. Quando um filho vivencia o fato dos pais deixarem de fazer o que lhes dá prazer para ensiná-los, eles aprendem que estão sendo amados. Além da influência do exemplo, pais que estão mais próximos dos filhos podem ensiná-los e incentivá-los a práticas de amor. Por exemplo, uma mãe que educa os filhos em casa sabe muito bem se um irmão está sendo egoísta com o outro irmão, podendo então corrigir essa característica. Se a criança passa o dia na escola e com a empregada, os pais raramente saberão se os filhos estão realmente cultivando os valores sociais cristãos. O menino pode ser um egoísta, agressivo, mentiroso e tantas outras coisas e os pais só descobrirão isso quando tais vícios já estiverem enraizados em seus corações. Pelo mesmo motivo, praticamente todas as habilidades sociais são melhor praticadas em um lar onde há educação domiciliar do que na escola. Como pais que convivem 2 ou 3 horas por dia com os filhos saberão se eles são, por exemplo, excessivamente introvertidos ou se estão por algum motivo se excluindo do convívio com os amigos?



b.      Autoconfiança versus Aceitação dos pares

Uma das habilidades sociais mais importantes que uma pessoa deve possuir é a autoconfiança. Um sujeito inseguro certamente tem problemas de convívio, pois tem medo de expressar sua opinião ou agir perante outras pessoas. No lar, quando uma criança faz algo de bom, os pais elogiam e as incentivam a repetir e a avançar em tais ações. Quando a criança faz algo de errado ou fala algo que não deve, os pais caridosamente as ensinam como é a forma correta. Elas aprendem que o erro faz parte do aprendizado e são ensinadas a ser humildes, a reconhecer que precisam sempre aprender mais. Isso gera autoconfiança nos filhos de modo que, quando vivenciarem uma discussão ou tiverem que fazer algo em público, não temerão os erros e nem as críticas.

Na escola costuma acontecer o contrário, pois as crianças sentem a necessidade de aceitação do grupo. Elas precisam fazer o que for preciso para serem aceitas e admiradas perante seus pares. Começam assim a falar como todos falam, agir como todos agem e quem faz diferente é zombado e excluído do grupo. Por esse motivo, tantas vezes vemos adolescentes agindo de modo contrário às suas convicções somente para não destoar dos colegas. Não bastasse o mal que isso faz à autoconfiança da criança, tal comportamento pode levar nossos filhos a criar hábitos e convicções contrários à fé. Por exemplo, as meninas sentirão necessidade de vestir as roupas que as outras meninas usam, por mais promíscuas que sejam. Os meninos que defendem a castidade serão perseguidos até o último dia da escola. Poderíamos citar uma infinidade de exemplos! É lógico que adolescentes que mantém suas convicções e seus valores mesmo depois de passar por vários anos de provação na escola serão pessoas fortes e firmes na fé, mas eles são minoria. O próprio vício da pornografia que aflige tantos jovens dentro da Igreja é uma prova disso.

Fica então a pergunta: vale a pena a socialização dessa forma? Queremos que nossos filhos se adequem a grupos de pessoas que agem completamente em desacordo do que ensinamos a eles? No fim das contas, o grande desafio dos pais cristãos é evitar que o filho seja socializado na escola!

Que socialização queremos para nossos filhos?


c.       Convivência com os diferentes

Muitas pessoas acreditam que a escola é o melhor ambiente para as crianças aprenderem a conviver com as diferenças. Mas de que diferença nós estamos falando? Quando as crianças estão na escola, elas costumam formar grupos de amigos de sua idade e com gostos e comportamentos semelhantes. É normal a exclusão e discriminação de crianças que não se adaptam a esses grupos. Não é à toa que há uma crescente preocupação com bullying no meio educacional. De fato, ainda que frequentem o mesmo ambiente, os estudantes vivem em grupos de semelhantes, não de diferentes.

Em uma família que pratica o Homeschooling, os pais têm mais tempo para ensinar aos filhos a amar as pessoas diferentes. Se ensinamos nossos filhos a amar o próximo, certamente eles crescerão sem preconceitos. Os pais podem levar os filhos a asilos, casas de acolhimento de mendigos e tantos outros lugares para as crianças aprenderem que há pessoas que sofrem muito. Isso os ajudará a criar uma postura de gratidão perante Deus e uma maior disposição a colocar-se a serviço dos outros. Eles também convivem com irmãos de idades diferentes. A convivência com os irmãos em tempo integral faz com que se estabeleça um laço de amizade mais forte entre eles, mesmo havendo vários anos de diferença entre uns e outros. Por exemplo, um garoto que ensina algo a seu irmão mais novo está amando. O que une os irmãos aqui não é mais um jogo de gostos e interesses, como entre colegas de escola, mas é um laço de amor concretamente vivido entre eles.

A maior convivência com os pais também é uma grande ajuda às crianças para que elas aprendam a lidar com as diferenças. Elas testemunham diariamente o que é o mundo adulto, quais são as preocupações e até mesmo as diversões de um adulto. Isso evita que os filhos vivam em um mundo artificial onde a maioria das pessoas tem a mesma idade e os mesmos interesses.


d.      Divertindo-se e fazendo amizades

É comum que as pessoas imaginem que crianças que fazem Homeschooling não possuem amigos ou que vivam isoladas e entediadas em casa. Essa tese não se sustenta por vários motivos: as crianças que são educadas no lar tendem a ser mais amigas dos irmãos; elas possuem vários amigos na Igreja; fazem amizade com colegas do esporte e com os vizinhos.  A diferença é que na escola os pais não têm controle nenhum sobre as amizades dos filhos. Eles passam o dia convivendo com pessoas que não sabemos quem são. Por isso não é de se espantar quando, de repente, os pais descobrem que os filhos tornaram-se pessoas muito diferentes do que desejavam. Por mais que nós ensinemos o que é certo e errado, os jovens precisam sentir-se inseridos e adaptados em seus grupos de amigos. Não estamos defendendo que nossos filhos devam ser isolados e protegidos como taças de cristais, até porque nós cristãos somos chamados a ser luz para este mundo. O que estamos dizendo é que não devemos ser ingênuos ao ponto de achar que nossos filhos são santos mártires que estão prontos a ser enviados a Sodoma e Gomorra e que sairão puros de lá. Nós afirmamos isso com base no que estamos vivenciando com o Victor Hugo. É uma luta diária não permitir que ele se torne como um dos meninos de sua escola. Desde vestimentas, jeito de falar e até comportamentos morais e gostos artísticos, a criança é influenciada pelas amizades em todos os aspectos de sua vida, por mais que os pais se esforcem. Os colegas de escola do Victor Hugo ouvem funk quebradeira na hora do intervalo, compartilham pornografia no celular e se embriagam em festinhas. Estamos falando de meninos de 12 anos de idade de uma das escolas particulares mais bem conceituadas de Brasília! Se eu coloco meu filho para passar 200 dias por ano junto a essas pessoas, como posso desejar que ele não se torne um deles?

Nós desejamos que nossos filhos tenham bons amigos e que se divirtam. Queremos que eles pratiquem esportes, leiam livros, joguem jogos de tabuleiro, conversem sobre suas descobertas etc. Para que tudo isso ocorra de forma saudável, não há ambiente melhor que o lar onde se pratica educação domiciliar.