Uma
das maiores dúvidas acerca da prática do Homeschooling
no Brasil gira em torno de sua legalidade, uma vez que inexiste qualquer
norma expressa a respeito. Muitos pais afirmam seu desejo de praticar o ensino
domiciliar, mas não o fazem por medo de infringir a lei. Outros escolhem ser homeschoolers, mas agem escondidos, como
se fossem contraventores. Ainda há aqueles com espírito mais libertário que
parecem preferir que seja ilegal mesmo para poder praticar a desobediência
civil. Enfim, poucas pessoas têm segurança da situação jurídica da educação
domiciliar no Brasil, e para dirimir essas dúvidas, fizemos esse post tomando por base o excelente parecer escrito pelo jurista Alexandre Magno Fernandes Moreira,
Diretor Jurídico da Associação Nacional de Ensino Domiciliar, sobre o tema[1]. Encorajamos todos aqueles
que têm qualquer interesse por Homeschooling
a aprender e, se possível, memorizar as argumentações do Dr. Alexandre Magno.
Conhecer a legislação é obrigação de quem pretende um dia praticar o ensino domiciliar |
O
ensino domiciliar, como substituto do ensino escolar, não é proibido
expressamente por nenhuma norma no ordenamento jurídico brasileiro, seja
constitucional, legal ou regulamentar. Nem, tampouco, é expressamente permitido
ou regulado por qualquer norma. O fundamento dessa omissão é bastante simples:
o assunto somente está sendo debatido no Brasil recentemente e, ainda, de forma
tímida. Existe, pois, uma lacuna na legislação brasileira, os dois principais
documentos que tratam de educação (Constituição Federal – CF e Lei de
Diretrizes e Bases da Educação – LDB) sequer mencionam a educação domiciliar, sendo que, apenas essa omissão já é suficiente
para, de forma preliminar, declarar a validade da educação domiciliar, pois a
CF tem como um dos pilares o princípio da legalidade (art. 5°, II), que
considera lícita qualquer conduta não expressamente proibida em lei.
Porém, como
a mera inexistência de proibição ainda pode gerar dúvidas naqueles que
consideram o tema por demais estranho, a adequação do fato em discussão deve
ser verificada ao espírito das normas vigentes. Em outros termos, além de não
existir norma expressamente proibitiva, procurar-se-à determinar a existência
ou não de normas que apoiem a aplicação do ensino domiciliar.
A questão da licitude ou ilicitude da educação domiciliar será analisada gradativamente ao se procurar responder a duas questões essenciais, seguindo a hierarquia do ordenamento
jurídico brasileiro: Constituição Federal, tratados internacionais de direitos
humanos (no caso, a Declaração Universal dos Direito Humanos) e leis ordinárias
(no caso, a LDB, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – e o Código
Civil – CC). As questões são as seguintes:
1ª. A quem compete prover a educação?
Não
há controvérsia a esse respeito, sendo a obrigação compartilhada entre a
família e o Estado, conforme demonstra o artigo 205. CF:
Art.
205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.
E
o artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação:
Art.
2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de
liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.
Ficando
claro, portanto, que o Estado e a família são responsáveis pela educação.
2ª. A quem compete a primazia na educação dos filhos menores?
A
resposta é dada de forma cristalina, respectivamente, na Declaração Universal
dos Direito Humanos e no Código Civil, conforme se segue:
3.
Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será
ministrada a seus filhos (artigo XXVI).
Art.
1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a
criação e educação.
Portanto,
os pais têm os deveres de educar e de dirigir a educação dos filhos e, para
cumpri-los, podem utilizar-se dos métodos que acharem mais pertinentes:
matricular os filhos em uma escola, ensiná-los em casa ou utilizar qualquer
outra forma intermediária. Nesse sentido, o Estado somente pode tomar para si a
educação do menor caso a família não tenha vontade ou condições de educá-lo em
casa. Por cautela, porém, deve se considerar a conclusão alcançada até aqui
como, ainda, provisória. Para torná-la definitiva, é necessária a apreciação de
todos os dispositivos constitucionais, legais e regulamentares pertinentes à
matéria.
Aspectos constitucionais
Inicialmente,
deve ser analisado o art. 208 da CF:
Art.
208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I
- educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos
de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não
tiveram acesso na idade própria; (...) § 3º - Compete ao Poder Público
recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar,
junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.
O
inciso I do mencionado artigo não obriga à escolarização, mas à educação, que é
conceito bem mais amplo. Sua interpretação é bastante simples: a educação, que
começa com o nascimento do indivíduo, deve assumir uma feição formal quando ele
tem de 4 a 17 anos, ou seja, deve cumprir as finalidades enumeradas no art. 203
da CF:
a) pleno desenvolvimento da pessoa;
b) seu preparo para o exercício da
cidadania; e
c) sua qualificação para o trabalho.
Para
alcançar essas finalidades, os pais podem, se tiverem as condições necessárias,
educar os filhos em casa. Mais ainda: de qualquer forma, a educação deve ser
realizada em casa. A própria CF reconhece isso ao dispor, no art. 229, que “os pais têm o dever de assistir, criar e
educar os filhos menores”. Portanto, a educação domiciliar não apenas é
permitida, mas também exigida dos pais.
Em síntese: constitucionalmente, a educação domiciliar é um dever da família, que perde boa parte do sentido de sua existência se não provê-la para seus membros mais frágeis. Também é um direito individual dos pais, que somente deixarão de exercê-lo se não puderem ou não quiserem.
A Constituição Federal de 1988 garante aos pais o direito de educar seus filhos |
Aspectos infraconstitucionais
O
art. 6° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação determina aos “pais ou
responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade,
no ensino fundamental”. Esse dever, porém, não se aplica aos pais que optaram
pelo ensino domiciliar por um motivo muito simples: o objeto da lei não é a
educação em geral, mas apenas aquela ministrada nas escolas: “esta Lei
disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio
do ensino, em instituições próprias” (art. 1°, § 1°).
Defender
interpretação diversa seria como pretender aplicar o Código de Trânsito
Brasileiro, que trata apenas dos veículos terrestres, a aviões e navios. Mesmo
que, apenas por hipótese, a LDB seja considerada como uma lei aplicável a
qualquer modalidade de ensino, deve-se atentar para o fato de que ela mesma não
exige que o aluno da educação básica (formada pela educação infantil e pelo
ensino fundamental e médio) tenha escolarização anterior:
Art.
24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de
acordo com as seguintes regras comuns: (...) II - a classificação em qualquer
série ou etapa, exceto a primeira do ensino fundamental, pode ser feita: (...)
c) independentemente de escolarização anterior, mediante avaliação feita pela
escola, que defina o grau de desenvolvimento e experiência do candidato e
permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme regulamentação do
respectivo sistema de ensino;
O
dispositivo referido permite expressamente que um aluno ingresse em algum dos
níveis da educação básica sem necessidade de ter frequentado anteriormente a
escola: basta a realização de uma avaliação que meça seu grau de
desenvolvimento. Trata-se de simples regra de bom-senso, que determina
prioridade do efetivo aprendizado sobre o mero comparecimento em sala de aula.
O
mesmo bom-senso foi utilizado pelo Governo Federal ao estabelecer que a
aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) tem como consequência a
expedição de um certificado de conclusão do ensino médio. Essa norma está
contida na PORTARIA NORMATIVA N° 4, DE 11 DE FEVEREIRO DE 2010, expedida pelo
Ministro da Educação:
Art.
1º O interessado em obter certificação no nível de conclusão do ensino médio ou
declaração de proficiência com base no Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM
deverá acessar o sítio eletrônico (http://sistemasenem2.inep.gov.br/Enem2009/),
com seu número de inscrição e senha, e preencher o formulário eletrônico de
solicitação de certificação, de acordo com as instruções pertinentes, até o dia
31 (trinta e um) de março de 2010.
Art.
2º O interessado deverá observar os seguintes requisitos: I - ter 18 (dezoito)
anos completos até a data de realização da primeira prova do ENEM; II - ter
atingido o mínimo de 400 pontos em cada uma das áreas de conhecimento do ENEM;
III - ter atingido o mínimo de 500 pontos na redação. Parágrafo único. Para a
área de linguagens, códigos e suas tecnologias, o interessado deverá obter o
mínimo de 400 pontos na prova objetiva e, adicionalmente, o mínimo de 500
pontos na prova de redação.
Art.
3º O INEP disponibilizará às Secretarias de Educação dos Estados, Municípios e
do Distrito Federal e aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia
as notas e os dados cadastrais dos interessados, nos termos do art. 1º, por
meio do sítio (http://sistemasenem.inep.gov.br/EnemSolicitacao/).
Art.
4º Compete às Secretarias de Educação e aos Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia, definir os procedimentos para certificação no nível de
conclusão do ensino médio com base nas notas do ENEM 2009.
Nessa
portaria, há um dispositivo de suma relevância: o art. 2°, que enumera os
requisitos para a obtenção do certificado de conclusão do nível médio: o
postulante precisa apenas ter 18 anos e alcançar uma pontuação mínima. A
relevância do dispositivo está exatamente naquilo que omite, pois não requer,
para a obtenção do certificado, a comprovação de que foram concluídas
regularmente todas as séries do ensino fundamental e médio. Assim, aquele que foi educado em casa poderá fazer o ENEM e, caso preencha os requisitos, conseguir um certificado de conclusão do ensino médio. Implicitamente, o Ministério da Educação
reconheceu como válida a educação domiciliar, adotando uma noção material de
ensino médio (determinado nível de desenvolvimento intelectual) ao invés da
tradicional concepção formal (número de séries frequentadas pelo aluno na
escola).
E quanto ao Estatuto da Criança e do
Adolescente - ECA?
O
art. 55 do ECA contém uma norma, à primeira vista, bastante peremptória: “os pais ou responsável têm a obrigação de
matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. Em uma
interpretação isolada, parece não haver opções para os pais: mesmo a
contragosto, estariam obrigados a matricular os filhos nas escolas. Porém,
obviamente, não existe norma isolada no sistema jurídico. Toda interpretação
deve ser sistemática, ou seja, deve considerar o conjunto das normas jurídicas.
E, como visto, há normas constitucionais, legais e regulamentares que permitem
o ensino domiciliar. Neste caso, há uma peculiaridade, pois o ECA tem um artigo
que determina um modo especial de interpretação de suas normas:
Art.
6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se
dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e
coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento.
Trata-se
da doutrina da proteção integral, que requer prioridade absoluta à criança e ao
adolescente, considerando a efetivação de seus direitos como o norte para a
interpretação do ECA. A questão, assim, torna-se bastante simples: qualquer norma dessa lei deixa de ser
obrigatória se for demonstrado que, no caso concreto, sua aplicação não reflete
o melhor interesse do menor. Além disso, a lei contém o vício já
examinado em outros casos: a educação domiciliar nem chegou a ser discutida
durante a sua tramitação. Mais ainda: à época de sua promulgação, nem se sabia,
no Brasil, da existência dessa modalidade de educação. Nesse sentido, a opção
era muito clara: deveria ser imposta a matrícula em estabelecimento escolar
porque a alternativa conhecida à época era, simplesmente, a ausência de
instrução. Pois bem, o art. 55 do ECA deve ser interpretado restritivamente, ou
seja, somente estão obrigados a matricular os filhos na escola, os pais que não
quiserem ou não puderem prover adequadamente o ensino domiciliar.
O Estatuto da Criança e do Adolescente também não proíbe a pratica do Homeschooling |
Ainda
é preciso fazer uma referência ao Conselho Tutelar, previsto nos art. 131 a 135
da lei. Seu objetivo é, expressamente, “zelar
pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente”. Entre esses
direitos, está, obviamente, o de receber a educação adequada. Assim, os membros
do Conselho Tutelar exercem o poder de polícia sobre as famílias no que tange à
educação dos filhos. É possível que verifiquem se os menores estão recebendo a
instrução adequada para sua idade. Podem, inclusive, realizar testes para
avaliar o desenvolvimento intelectual dos menores. Os limites da atuação do
Conselho Tutelar esbarram no poder familiar concedido pelo Código Civil aos
pais. Como visto, somente a estes cabe dirigir a educação dos filhos. Caso um
membro desse conselho resolva atuar pelo simples fato de os pais estarem
educarem os filhos em casa, ele estará usurpando o poder familiar e praticando,
portanto, um ato de abuso de autoridade, que implica responsabilidade civil,
administrativa e, eventualmente, penal.
E o Código Penal?
A
última lei a ser analisada é o Código Penal, que dispõe acerca do chamado “Abandono
intelectual”;
Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover
à instrução primária de filho em idade escolar: Pena - detenção, de quinze dias
a um mês, ou multa.
Perceba-se
que não há, aqui, nenhuma obrigação de manter o filho em uma instituição
escolar, mas apenas de “prover à instrução primária”, ou seja, de educá-lo, em
casa ou na escola. Isso se torna mais evidente ao verificar o tratamento que a
Constituição de 1937, vigente à época da promulgação do Código Penal Brasileiro,
dava à educação:
Art.
125 - A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos
pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira
principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as
deficiências e lacunas da educação particular.
É
difícil imaginar um dispositivo que permita a educação domiciliar de forma mais
evidente. Está bem estabelecido o direito primordial dos pais e o caráter
apenas colaborativo da atuação do Estado. Portanto,
não matricular os filhos na escola será crime de abandono intelectual apenas se
os pais não proverem a instrução em casa. Ademais, é possível, ao
contrário, que a matrícula em instituição de ensino que não consiga prover
adequadamente a instrução, como é bastante comum, configure esse crime.
A educação domiciliar não se caracteriza como abandono intelectual |
Conclusões
A
precedente análise do ordenamento jurídico brasileiro permite as seguintes
conclusões:
1ª)
o ensino domiciliar não é proibido no Brasil. Não há nenhuma norma jurídica
que, expressamente, o considere inválido. Em casos como esse, aplica-se o
princípio constitucional da legalidade, que considera lícito qualquer ato que
não seja proibido por lei;
2ª)
o ensino domiciliar é um dever que os pais ou responsáveis têm com relação aos
filhos. A educação, em sentido amplo, deve ser dada principalmente em casa, sendo
a instrução escolar apenas subsidiária;
3ª)
o ensino domiciliar também é um direito dos pais, pois, conforme o Código
Civil, uma das atribuições decorrentes do poder familiar é a de dirigir a
educação dos filhos. A escolarização somente é necessária se os pais não
puderem ou não quiserem educar os filhos em casa;
4ª)
essa interpretação foi adotada implicitamente pelo Ministério da Educação ao
dispor que a obtenção de determinada pontuação no Enem dá direito a um
certificado de conclusão do ensino médio, sendo desnecessária qualquer
comprovação escolar;
5ª)
a matrícula em instituição de ensino somente é obrigatória, nos termos da LDB e
do ECA, para os menores que não estejam sendo ensinados em casa ou cuja
educação domiciliar revele-se, indubitavelmente, deficiente;
6ª)
somente há crime de abandono intelectual se não for provida instrução primária
aos filhos. O CP, ao prever essa conduta, não colocou como requisito que essa
instrução deva ser dada na escola;
7ª)
o Conselho Tutelar tem o poder, assegurado legalmente, de fiscalizar a educação
recebida por crianças e adolescentes, podendo, inclusive, submeter aqueles
educados em casa a avaliações de desempenho intelectual condizente com sua
idade. Não pode, porém, determinar o modo como serão educados, em casa ou na
escola, o que constituiria abuso de autoridade por intromissão indevida na
esfera do poder familiar dos pais.
[1]
A Situação Jurídica da Educação Domiciliar em Nosso País. (http://www.aned.org.br/portal/downloads/A_situacao_juridica_do_ensino_domiciliar_no_Brasil.pdf)